Um recente episódio envolvendo executivos da empresa norte-americana Astronomer reacendeu o debate sobre relacionamentos amorosos no ambiente de trabalho. A situação ganhou repercussão após uma transmissão pública — popularmente conhecida como “kiss cam” — registrar um momento íntimo entre o CEO da companhia e a diretora de recursos humanos durante um show da banda Coldplay, em Boston, no dia 17 de julho.

Internautas rapidamente identificaram os envolvidos como colegas de trabalho e começaram a levantar dúvidas sobre as possíveis consequências jurídicas e trabalhistas desse tipo de situação, especialmente no Brasil. Afinal, ter um relacionamento com um colega de trabalho pode resultar em demissão por justa causa?

O que diz a CLT sobre relacionamentos entre colegas

A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) não proíbe relacionamentos afetivos entre funcionários de uma mesma empresa. Além disso, a Constituição Federal de 1988 garante a proteção à intimidade e à vida privada dos cidadãos, assegurando que escolhas pessoais — como namoro ou casamento — não podem, por si só, ser motivo para penalidades no trabalho.

Segundo a advogada trabalhista Cristina Pena, tentar impedir que funcionários se relacionem afetivamente pode configurar violação aos direitos da personalidade. “Proibir que as pessoas se apaixonem é inconstitucional. O que se pode exigir é uma conduta adequada no ambiente corporativo, sempre com respeito e sem discriminação”, destaca.

Regras internas podem estabelecer limites no ambiente de trabalho

Embora não exista uma proibição legal, as empresas estão autorizadas a definir políticas internas de conduta para evitar conflitos de interesse e proteger a produtividade e a imagem institucional.

Conforme explica o advogado trabalhista Ronaldo Ferreira Tolentino, essas regras devem constar em códigos de ética e conduta. É comum que as organizações imponham restrições, como a proibição de relações entre superiores e subordinados diretos, ou ainda a exigência de que o relacionamento seja informado ao setor de Recursos Humanos.

Essas medidas visam prevenir favorecimentos, desconfortos entre a equipe e proteger a imparcialidade nas decisões gerenciais, especialmente em situações de avaliação de desempenho ou promoções.

Casos extremos podem configurar justa causa?

A CLT, em seu artigo 482, prevê hipóteses de demissão por justa causa, entre elas a chamada “incontinência de conduta”, que pode incluir comportamentos considerados inadequados dentro da empresa.

No entanto, a aplicação dessa regra exige cautela. A jurisprudência brasileira não costuma considerar relacionamentos ou mesmo traições como motivo suficiente para a demissão por justa causa, a menos que haja descumprimento de normas internas previamente divulgadas ou prejuízo claro e comprovado à empresa.

Como explica Tolentino, “um relacionamento extraconjugal entre colegas, por exemplo, só seria passível de justa causa se houver violação objetiva de regras internas ou consequências negativas para o ambiente de trabalho”.

Demonstrações públicas de afeto podem ser limitadas

Apesar de os relacionamentos em si não serem proibidos, manifestações públicas de afeto em ambiente corporativo podem ser reguladas pelas normas internas da empresa.

A advogada trabalhista Ana Gabriela Burlamaqui afirma que beijos, abraços prolongados ou atitudes íntimas podem ser consideradas inadequadas, dependendo do contexto organizacional. “O casal pode ser advertido, suspenso ou, em casos mais graves ou reincidentes, até demitido — desde que tudo esteja previsto nos regulamentos da empresa”, explica.

Por isso, é fundamental que as normas estejam bem documentadas e que os funcionários tenham acesso a essas diretrizes, promovendo um ambiente de trabalho respeitoso e profissional.

O sigilo do relacionamento pode ser um problema?

Manter um relacionamento em segredo dentro da empresa não constitui, por si só, uma infração disciplinar. Porém, se o sigilo violar políticas internas — como a obrigatoriedade de comunicar relações entre líderes e subordinados —, isso pode gerar consequências administrativas.

Ana Gabriela ressalta que a demissão por justa causa só é cabível se houver comprovação de que uma norma conhecida foi desrespeitada e que a conduta afetou negativamente o ambiente de trabalho, a equipe ou a imparcialidade da gestão.

Transparência é fundamental, especialmente quando o relacionamento envolve estruturas hierárquicas que podem gerar conflito de interesses.

Proibição genérica de contratar cônjuges é legal?

Empresas podem adotar políticas para evitar o nepotismo, restringindo a contratação de cônjuges ou parentes próximos em determinados setores. No entanto, proibições amplas e sem fundamentação podem ser vistas como discriminatórias.

Decisões reiteradas do Tribunal Superior do Trabalho (TST) apontam que essas restrições só são válidas se estiverem baseadas em riscos reais de prejuízo à imparcialidade administrativa. Cristina Pena destaca que “a política precisa ser objetiva, coerente e não pode violar o princípio da igualdade de oportunidades”.

Ou seja, é possível estabelecer regras, desde que haja base legal e respeito aos direitos fundamentais.

Casais podem pedir férias ou horários compatíveis?

Funcionários que mantêm um relacionamento amoroso podem solicitar férias no mesmo período ou horários de trabalho compatíveis, especialmente em empresas com turnos ou atividades nos fins de semana.

No entanto, o artigo 136 da CLT estabelece que a concessão de férias é prerrogativa do empregador, que deve considerar os interesses do funcionário, mas pode recusar o pedido com base na conveniência operacional.

Algumas empresas optam por adotar cláusulas internas ou acordos coletivos que possibilitam essa flexibilidade de forma clara e organizada, o que pode contribuir para um ambiente de trabalho mais equilibrado.

Relações afetivas podem gerar dano moral?

Se um funcionário for demitido exclusivamente em razão de um relacionamento com colega, e não houver violação de regras internas, ele pode buscar a reparação por dano moral na Justiça do Trabalho.

Para que o pedido seja aceito, será necessário comprovar que a demissão teve motivação discriminatória e que gerou prejuízos à honra, dignidade ou reputação do trabalhador. Cristina Pena orienta que o trabalhador reúna provas documentais, testemunhas e registros que demonstrem o abuso cometido pela empresa.

Esse tipo de ação é analisado caso a caso, considerando o contexto da dispensa e a existência (ou não) de justificativa plausível.

Empresas devem agir com cautela diante de exposições públicas

Situações como a vivida pela empresa Astronomer mostram como a exposição pública de relacionamentos entre colegas ou dirigentes pode afetar a imagem institucional de uma empresa.

Por isso, é essencial que as organizações tenham políticas claras de conduta, invistam em treinamentos internos e mantenham canais de comunicação acessíveis para que os colaboradores se sintam à vontade para esclarecer dúvidas ou comunicar situações delicadas.

Relacionamentos entre colegas de trabalho não são proibidos pela CLT, tampouco pela Constituição. No entanto, é dever das empresas e dos próprios profissionais zelar por um ambiente equilibrado, respeitoso e produtivo.

A demissão por justa causa somente será válida em casos de violação concreta a normas internas devidamente divulgadas e desde que fique comprovado que a conduta prejudicou a empresa ou comprometeu a estrutura de trabalho.

Empresas que desejam evitar litígios trabalhistas devem fundamentar suas decisões na legalidade, na proporcionalidade e no respeito aos direitos fundamentais dos trabalhadores.

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