Imagine uma empresa de segurança armada sendo obrigada a contratar adolescentes como aprendizes para atuar como vigilantes. A imagem de um jovem vestindo colete à prova de balas e portando arma parece absurda — e é. Para evitar esse tipo de distorção, o Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo (TRT-SP) validou uma cláusula coletiva que exclui a função de vigilante do cálculo da cota de aprendizes.
Na prática, isso significa que a Justiça reconheceu que, devido às exigências legais e à natureza da atividade, não faz sentido incluir vigilantes na base de cálculo que determina quantos jovens aprendizes uma empresa deve contratar.
O que diz a lei sobre contratação de aprendizes
Segundo o artigo 429 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), empresas de médio e grande porte devem contratar aprendizes em número equivalente a, no mínimo, 5% e, no máximo, 15% dos trabalhadores cujas funções demandem formação profissional.
Já o artigo 428 define que o contrato de aprendizagem é destinado a jovens entre 14 e 24 anos, combinando formação teórica e prática. Trata-se de uma política pública voltada à inclusão profissional de adolescentes e jovens.
Por que vigilantes não se encaixam na política de aprendizagem
A atividade de vigilância armada exige requisitos legais que tornam impossível a atuação de menores de idade. Para ser vigilante, é necessário:
- Ter no mínimo 21 anos
- Realizar curso de formação específico
- Obter porte de arma, que só é permitido a partir dos 25 anos
Além disso, o artigo 405 da CLT proíbe o trabalho de menores em atividades perigosas. Portanto, exigir aprendizes em funções que eles legalmente não podem exercer seria um contrassenso.
A solução negociada entre sindicatos e empresas
Diante dessa incompatibilidade, os sindicatos patronais e profissionais da segurança privada negociaram uma cláusula coletiva que direciona a contratação de aprendizes para funções administrativas. Assim, a cota obrigatória é cumprida sem expor jovens a riscos ou criar vagas artificiais.
Essa medida protege os adolescentes e garante que a política de aprendizagem seja aplicada de forma coerente com a realidade do setor.
Negociação coletiva como instrumento de bom senso
A decisão do TRT-SP se apoia no princípio da autonomia coletiva, reforçado pela Reforma Trabalhista de 2017. O Supremo Tribunal Federal também reconheceu, no Tema 1046 de Repercussão Geral, que convenções coletivas podem estabelecer exceções à legislação trabalhista, desde que não violem direitos fundamentais.
No caso dos vigilantes, não há violação de direitos de menores, pois eles já estão legalmente impedidos de exercer essa função. A cláusula apenas reconhece essa limitação e ajusta a aplicação da lei ao contexto específico.
Críticas e reflexões sobre a decisão
O Ministério Público do Trabalho criticou a medida, alegando que sindicatos e empresas não poderiam negociar sobre cotas de aprendizagem, por se tratar de política pública de interesse coletivo. Alguns setores também argumentam que excluir categorias da base de cálculo compromete o direito à qualificação profissional dos jovens.
Essas críticas levantam uma questão importante: estamos diante de uma renúncia de direitos ou de uma adaptação necessária? A decisão do TRT-SP mostra que não se trata de negar oportunidades, mas de evitar incoerências legais.
Aprendizagem com segurança e coerência
Jovens continuam tendo direito à formação profissional, mas em funções compatíveis com sua idade e segurança. A negociação coletiva, nesse caso, funcionou como um ajuste racional, evitando que a lei seja aplicada de forma cega e ineficaz.
A decisão também convida à reflexão sobre o papel do Estado na regulação do trabalho. Em certos contextos, permitir que os próprios atores sociais negociem soluções pode ser mais eficaz do que impor regras genéricas.
Conclusão: quando o bom senso aperfeiçoa a lei
A exclusão dos vigilantes do cálculo da cota de aprendizes não subverte a política de inclusão — ela a torna mais realista e segura. A decisão do TRT-SP valoriza o diálogo social e mostra que a negociação coletiva pode ser uma ferramenta legítima para adaptar a legislação às especificidades de cada setor.
Em vez de aplicar a lei de forma rígida e desconectada da realidade, essa solução promove uma justiça do trabalho mais inteligente, contextualizada e sensível às diferenças legítimas entre funções e faixas etárias.